Tuesday, June 14, 2005

Lembrar Eugénio - breves actos (1)


Retrato com sombra________________________

Que morte é a sombra deste retrato,
onde eu assisto ao dobrar dos dias,
órfão de ti e de uma aventura suspensa?

Tu não eras só este perfil.
Tu não eras só este sossego aconchegado
nas mãos como um regaço.
Tu não eras apenas
este horizonte de areia com árvores distantes.

Falta aqui tudo o que amámos juntos,
o teu sorriso com ruas dentro,
o secreto rumor das tuas veias
abrindo sulcos de palavras fundas
no rosto da noite inesperada.
Falta sobretudo à roda dos teus olhos
a pura ressonância da alegria.

Lembro-me de uma noite em que ficámos nus
para embalar um beijo ou uma lágrima,
lutando, de mãos cortadas, até romper o dia,
largo, intacto,
nas pálpebras molhadas dos lírios.

Tu não eras ainda este perfil
com uma rosa de cinza na mão direita.
Eu andava dentro de ti
como um pequeno rio de sol
dentro da semente,
porque nós - é preciso dizê-lo -
tínhamos nascido um dentro do outro
naquela noite.

Esse é o teu rosto verdadeiro;
o rosto que vou juntando ao teu retrato
como quando era pequeno:
recortando aqui,
colando ali,
até que uma fonte rasgue a tua boca
e a noite fique transbordante de água.

Eugénio de Andrade

Monday, June 13, 2005

19.01.1923 - 13.06.2005

Canção Breve______________________
"Tudo me prende à terra onde me dei:
o rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente.

Tudo me prende do mesmo triste amor
que há em saber que a vida pouco dura,
e nela ponho a esperança e o calor
de uns dedos com restos de ternura.

Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria,
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia."
Eugénio de Andrade

Nunca saberemos que coisas de nós ficam nos outros...
quando a vida se dissolve, que parte do que fomos permanece na memória e na saudade?
Eugénio nunca soube que sempre foi o poeta que mais me disse... nunca soube das tardes em que foi mais que uma companhia.
Foi simples e cristalino... despiu-se das ânsias do drama e dos caminhos tortuosos por onde quase sempre seguem os que desejam densidade que tantas vezes se resume a nevoeiro.
Eugénio foi límpido e serenamente inquietante.
Ensinou-me que não é nos adjectivos que se escondem as qualidades das coisas e foi nas palavras que lhe bebi que aprendi a embriagar os dedos.
Eugénio permanecerá sempre na memória e na saudade porque nos doou esculturas de palavras perenes "e a certeza de que a sepultura é uma cova onde não cabe o coração."

Wednesday, June 08, 2005

Summertime

Existe um tipo de calor diferente de todos os outros... é aquele calor que só existe nas noites de certas planícies e que se parece com um abraço dos amigos de outrora. É um calor que protege a caminhada escura e que convida a estender o corpo no telhado e ficar ali, à espera do milagre da revelação das nocturnas coisas que desaparecerão pela manhã. O calor que sempre nos lembra das coisas que depressam ardem... e por isso entranha na pele a saudade dos abraços que se perderam sem razão nenhuma- só porque "foi como entrar, foi como arder..."

"Summertime and the livin’ is easy
Fish are jumpin’ and the cotton is high
Oh your daddy’s rich and your mama is good looking
So hush little baby, don’t you cry
One of these mornings
You’re goin’ to rise up singing
Then you spread your wings
And you’ll take to the sky
But till that morning
There’s nothin’ can harm you
With daddy and mammy standin’ by "
Letra e música por : G.Gershwin&DuBose Heyward

Wednesday, June 01, 2005

[celebração da simplicidade

Há qualquer coisa no dia de hoje... não sei se a data lhe confere mais signinificado, mas hoje, parte de mim olha as crianças que desfilam pela cidade, com sorrisos festivos que lembram ao mundo que hoje é o dia em que se celebra a promessa de sempre existir no mundo um lugar para o sorriso fácil, a amizade desinteressada, a curiosidade por coisas azuis, a verdade da lágrima sentida, a admiração pelas novas descobertas, o êxtase pelas pequenas conquistas.
Muitas vezes a voz do Freddy Mercury lembra-me aquilo que frequentemente sinto... "I feel like no-one ever told the truth to me... about growing up and what a struggle it would be!"
E hoje, nos meus vinte e dois anos, penso na simplicidade que se vai perdendo à medida que o número dos sapatos cresce! Certo dia, há menos tempo do que de facto agora parece, um amigo fez-me ver que quando crescemos verificamos que certas coisas só têm espaço em sítios onde já não há esperança... porque só quem já não tem nada a perder sabe receber o que quer que seja que a vida ainda tem para lhe dar... porque só quem não tem nada a perder se recusa a trocar qualidade por velocidade! E hoje, sobretudo hoje, um turbilhão de coisas me vêm à mente... numa altura em que uma tristeza inexplicável e a que não estou habituada se instalou com a noção que de facto vai deixando de haver lugar para as coisas simples...
Sorrisos fáceis confundem-se com imaturidade, amizade desinteressada e toda a dedicação que entusiasticamente se oferece confunde-se com os jogos nos quais as pessoas se vão refugiando cada vez mais e mais, a curiosidade por coisas azuis perturba a busca do conhecimetno por coisas cinzentas, a verdade da lágrima sentida rotula-nos de fracos, a admiração pelas novas descobertas dilui-se porque vamos deixando que sejam os outros a descobrir as coisas por nós e o êxtase pelas novas conquistas depressa se esquece face ao novo desafio que o tapete rolante depressa colocou à nossa frente.
Tenho saudades dos tempos em que tudo era simples... porque as coisas podiam ser plenas e não havia sorrisos a serem contidos e lágrimas a serem escondidas.
E tal como neste dia se celebra a criança... como gostaria que na vida se celebrasse a simplicidade que há em fazer um desenho com todas as cores que nos passeiam pela alma e podê-lo oferecer a alguém que tivesse a ousadia de recebê-lo sem cortesias mas com o entendimento profundo dos mistérios da alegria generosa.