Friday, May 25, 2007

Prelúdio

"Patch Adams"
Acredito que entre todas as entidades contagiosas que já estudei, o amor é o mais poderoso. Contagia ainda que usemos luvas de látex para proteger as mãos ou máscaras com viseira para evitar que penetre no nosso corpo.
Ao ver este filme pude ver-nos ali - finalistas de Medicina que daqui a dois meses vão poder ostentar uma bata e um estetoscópio e ter o poder de penetrar muito profundamente na vida de inúmeras pessoas. E não serão poucas as vezes em que iremos de luvas de látex e máscara. Contudo, ainda que nenhuma doença nos possa contagiar, descobri ao longo destes 6 anos como aluna, que quem somos não se esconde por detrás de todo esse aparato. Quem somos sempre vem à tona quando alguém nos pergunta, olhos nos olhos: "Doutora, vou morrer?"

Desde 4ª feira que não vou à enfermaria. Dores de garganta, febre, enfim... nada que mate, mas que mói. Ainda assim, sinto um certo alívio por estar doente. É o refúgio ideal para ficar no meu canto sem ter que olhar o Sr. José e lhe dizer que sim... eventualmente o seu cancro vai acabar por vencer!
Na altura só me ocorreu dizer-lhe que, na realidade, ninguém sabe dizer ao certo quando é que a morte chega. Isso, só Deus sabe!
Frases feitas.
Na altura respondi sem pensar que "frases feitas" não ajudam quando interiormente se sente que a vida se está a esgotar. Curioso... quando nos encurralam com perguntas difíceis o mais instintivo é recorrermos a lugares comuns.
Como dizia, quem somos sempre vem à tona e descobrimos invariavelmente a nossa cobardia e inexperiência!

Depois do primeiro impacto resolvi que não havia muito que pudesse fazer para aliviar o sofrimento daquele marido apaixonado apesar dos anos, daquele pai de três senhoras e avô de duas meninas. Sentei-me ao seu lado e deixei-o chorar nas minhas mãos. Quem me dera tê-lo feito rir... tirar do bolso o meu nariz de palhaço e fazê-lo recordar a vida que há num sorriso.
Ainda assim, mesmo sentindo que fiz tudo errado, percebi que existe Graça no amor. Pude ver nas suas lágrimas que ter ficado ali, em silêncio, foi para ele mais importante que qualquer resposta iluminada ou qualquer tentativa aparvalhada de minimizar a sua dor.

Creio que a real mensagem do Dr. Adams foi a do amor - "Patch", que significa "remendo", é a ilustração perfeita para o que ele fazia. Procurava o buraco por onde saía a esperança e remendava-o.
Nem todos saberemos como tornar as vidas dos que nos rodeiam mais felizes, mas se estivermos atentos, realmente atentos, acontecerá termos o privilégio de sermos contagiados por um pouco de amor e, consequentemente, sermos portadores de um pouco de conforto e esperança.

Penso que isto serve para todos na mesma medida - professores, contabilistas, empregados de balcão, secretárias, taxistas, polícias, etc. Todos nós temos os nossos próprios buracos que precisam ser preenchidos, todos nós temos momentos em que sentimos a esperança a fugir e todos nós precisamos de amor para viver. Se isto é assim tão verdade para todos e uma inevitabilidade da vida, espanta-me que façamos tanto esforço para nos escondermos por detrás de um nome, de um estatuto, de uma bata, de um balcão, de uma secretária, de uma cara fechada.
No final, o que resta?!...

"What's wrong with death sir? What are we so mortally afraid of? Why can't we treat death with a certain amount of humanity and dignity, and decency, and God forbid, maybe even humor. Death is not the enemy gentlemen. If we're going to fight a disease, let's fight one of the most terrible diseases of all, indifference."

O mais contagioso? O amor.
A mais mortal? A indiferença.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Acaba por ser "simpático" descobrir que afinal este blog é realmente teu, tal como suspeitava. Alguns textos e pensamentos eram demasiado coincidentes.
Penso que neste momento já és "MÉDICA"?! Do pouco que conheci de ti acredito que farás alguma diferença. Mas desde que trabalho na emergência médica tenho visto muito boa gente a ser sugado pelo sistema frio, distante, arrogante e desumano de alguns hospitais. Nãosei se alguma vez trabalharás numa urgência, mas se o fizeres sê cristã com todos...com todos. DO CARE!!

September 26, 2007 at 2:20 PM  
Anonymous Anonymous said...

um texto sublime, com uma simplicidade tocante. na minha caminhada - lenta e desgastante, às vezes obrigada a afogar-se por detrás de tratados, quando dentro de mim se contorce a vontade de estar na enfermaria, na urgência, no acto - deparo-me por vezes com a dúvida do que serei capaz de fazer, de mudar. queira o curso das coisas que tenha a felicidade de ser tão útil como esse silêncio abeirado, esse dar a mão tão sofrido e engasgado.

e, sabes...? numa médica como a que se adivinha em ti confia-se a vida e confiam-se os familiares e amigos.
boa sorte.

March 8, 2009 at 12:08 PM  

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