A melodia do homem | SARAMAGO
"É uma vida à procura de uma voz.
A melodia do homem nasce dessa busca incessante: descobre-se quando nos descobrimos.
Não foi fácil: desaprender custa mais do que aprender.
Estarei agora, ao menos, mais perto desse dizer que ajude outros a falar?"
Eugénio de Andrade, prefácio in 'Vertentes do Olhar'
E é na voz de Saramago que não se perdeu mas que sempre viverá - nas palavras, nas angústias, e na cegueira que sem sabermos há muito nos acompanha - que nasce a melodia de uma liberdade que já não tem o vermelho dos cravos de outrora:
«Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo... »
José Saramago, in 'Cadernos de Lanzarote - Diário III', pág. 148
A morte continua entre nós... sem intermitências.
E se é inevitável perder no tempo os rostos, que permaneçam ao menos os legados!
Se já esquecemos os que antes de Saramago nos legaram o ideal da liberdade, tentemos ao menos um último esforço de humanidade numa altura em que lentamente nos tornamos, como outro José, o Fanha, diria: "Gente pouca, pouca e seca!"
Embora ateu, José Saramago soube expressar melhor que ninguém uma das verdades bíblicas mais contemporâneas - a da cegueira colectiva: a imoralidade dos que desviam o olhar por interesse, a imundície que habita na impunidade daquilo que ninguém vê, a incapacidade de realmente ver. Afinal, sempre será verdade que "Têm olhos, mas não vêm"...
Se nada mais sobrar de Saramago, que pelo menos isto permaneça - a urgência de devolver a luz ao verbo olhar!