Monday, February 21, 2005

Mais que uma história...

Sabes Zibli, ninguém acredita que existes. Quando falo aos crescidos de ti olham-me com aqueles olhos grandes e abanam a cabeça. Dizem que só existes na minha imaginação. Para que servem os olhos grandes dos crescidos se não te conseguem ver?
Ainda bem que estás aqui comigo. Não é que me sinta sozinha... tenho muitos amiguinhos aqui e as senhoras enfermeiras e os doutores fazem-me sempre muita companhia. A mamã e o papá também vêm cá sempre que podem, mas o papá disse que eles precisam trabalhar para ganhar os tostões para a roupa, os brinquedos, a comida, essas coisas... e os meus manos precisam deles em casa. Mas mesmo assim, ainda bem que estás aqui... é que sinto que algo estranho se passa e não sei como falar disso com os crescidos. A mamã disse que eu vinha para o hospital para ficar boa mas já se passou tanto tempo e eu continuo aqui.
Sabes... à noite, quando estão todos a dormir, penso que estou em casa... mas quando tenho sonhos maus e quero ir enfiar-me na cama dos papás percebo que tenho que ficar na minha cama, sozinha, à espera que a noite passe e penso no que a mamã disse: “Tens que ser forte... tens que ser uma menina grande!”... mas a verdade é que as minhas mãos ainda são pequeninas e os meus pés mal dão para encher a parte da frente dos chinelos do papá! Zibli... tenho medo.
O senhor doutor ontem explicou-me porque é que estou doente... falou-me de uma fábrica que tenho dentro do meu corpo que já não funciona bem e por isso os aviões que monta saem avariados e sem asas... também me explicou que o cabelo é como as flores que murcham mas deixam lá as sementes e que por isso voltam a crescer. Ele disse que se eu tiver um pouco mais de paciência vou voltar a ter cabelo. Perguntei-lhe porque é preciso tantas picas... disse que é para ajudar a fábrica a funcionar melhor e também, às vezes, é para verem como estão os aviões. Depois deixou-me brincar com aquela coisa de ouvir o coração e deu-me umas luvas como as que as enfermeiras usam.
Contei isto à minha mãe e perguntei-lhe porque é que a minha fábrica avariou... terá sido pelas vezes em que não comi a sopa? Mas ela disse que a culpa não era minha... que eu era uma menina muito bonita e que não havia razão nenhuma.
E eu que pensava que os crescidos sabiam as razões para tudo.
Sabes Zibli... apetecia-me ir para a cama dos meus pais, mas não pode ser. Ainda bem que estás aqui. Assim podemos esperar juntos pelo dia de amanhã... é que amanhã vem cá aquela menina que nos conta histórias... vou pedir que me conte aquela história do principezinho e do seu planeta pequenino e da sua rosa, ou aquela história de um gato que encontrou uma gaivota bebé que não tinha mamã e que ele teve que ensinar a voar, mas também pode ser aquela história da concha que tem uma caminha lá dentro para meninas como eu poderem dormir e sonhar com coisas bonitas.

“Apareceu quando me viu adormecer... ficou sentado perto de mim, onde mora a fantasia. Quis-lhe tocar, mas não se pode ter a noite a iluminar o dia! Soprou devagarinho uma estrela que se acendeu na sua mão – disse-me: ‘Podes sempre vê-la se souberes soprá-la no teu coração!(...) Está a nascer o dia, vou para onde a noite se esconder! Volto com a primeira estrela para tu nunca teres medo ao escurecer...’” *
*O menino do piano, Mafalda Veiga

[Às vezes fico a imaginar o que vai na cabecinha destes pequeninos que são obrigados a crescer mais do que as suas mãos e os seus pés. E porque a verdade é que os crescidos não sabem as razões de tanta coisa, Deus me conserve os olhos pequeninos para poder sempre ver o que os seus olhos vêm para que um dia eu possa saber contar as histórias que os façam conseguir esperar pelo próximo dia.]

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

E mais um vinte a Deontologia...

February 25, 2005 at 12:04 AM  

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