Thursday, February 08, 2007

[dissecação]

Rodin, "A mão de Deus"


Um Corpo.
Simplesmente um Corpo.
Frio. Vazio.
Um Corpo. Nada mais.

Cruzamo-nos todos os dias com pessoas… e vendo nelas vida, não vemos nelas apenas corpo. Matéria. Pele, músculo, osso. Artéria, veia, nervo. Serosa, parênquima, mucosa. Cápsula, órgão, célula. Membrana, citoplasma, núcleo. DNA, gene, proteína.
Mas hoje, ao entrar naquela sala fria, vazia… um Corpo – e nada mais. Ali deitado como quem espera de olhos fechados, dormindo talvez… um Corpo outrora vivo, outrora gente, outrora pessoa. Agora, apenas Corpo. Matéria. Pele, músculo, osso. Artéria, veia, nervo. Serosa, parênquima, mucosa. Cápsula, órgão, célula. Membrana, citoplasma, núcleo. DNA, gene, proteína.

E ali, em cima da mesa de autópsias, não interessa a sua nudez, não interessa que três dias antes talvez não tivesse recebido um convidado em sua casa sem estar convenientemente apresentável, não interessa que talvez tivesse segredos a esconder – nada nele ficará por observar.
Em breve, a sala continuará fria, mas pouco a pouco chegarão os olhos, os materiais, os papéis. Em breve deixará de ter a forma de Corpo – deixará de ser nome próprio e passará a ser substantivo comum: corpo e não Corpo. E assim será mais fácil olhá-lo, cortá-lo, abri-lo. E envolvidos naquele amontoado de matéria, observando tudo lâmina a lâmina, rapidamente começará a procura de lesões, causas de morte, nexos de causalidade e ficará no esquecimento que aquilo que agora é casa vazia, teve dentro gente, sonhos, fomes, medos, sorrisos, desejos, iras, alívios, malícias, esperanças, dúvidas. O que hoje é corpo, já teve o sopro da vida.
E como é fácil esquecer que é mesmo verdade que sem o sopro divino, não passamos de pó.

Autópsia [do Gr. autopsia - autós, próprio + ópsis, acção de ver - acção de se ver a si próprio...

Corino de Andrade, esse grande médico e pioneiro na descoberta da “doença dos pezinhos”, era bem novo quando percebeu uma verdade que julgo que nunca ao longo da sua vida terá esquecido… dizia ele “Tudo passa nesta vida, o que é sombra já foi luz!”
E hoje, ao chegar a casa e sentindo que tudo em mim doía, recitei baixinho os versos desse poema escrito há muitos muitos anos… “Tudo passa nesta vida.”
Despi-me, olhei o meu corpo no espelho, e tentei interiorizar a verdade do corpo na minha mente… amanhã serei sombra. Hoje sou luz.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

nunca serás sombra, menina. que isso nunca seja um medo dentro de ti*

February 10, 2007 at 11:22 PM  

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